Aquele homenzarrão forte, com seu botoque inconfundível, roupas coloridas, símbolo e líder do povo caiapó, ouvido no mundo inteiro e recebido nos gabinetes mais importantes das nações desenvolvidas teimava em conter as lágrimas, que mais teimosas do que ele, rolavam por seu rosto queimado pelo sol xinguano.
Com seu choro silencioso o lendário cacique Raoni Metuktire mostrava seu lado afetivo, familiar. Diante dele, no necrotério, em Nova Mutum, o corpo de seu filho Tedjê e de outros nove caiapós vítimas de um acidente na BR-163. Raoni se recuperou, mas com a morte da mulher, Bekwykà, o coração da maior liderança indígena brasileira entrou em descompasso. Debilitado, luta pela vida no Hospital Dois Pinheiros, em Sinop.
Até o final da semana passada Raoni fazia mistério sobre sua idade. Mas que importância tem isso diante da grandeza de sua luta? Ao ser internado em Colíder, na quinta-feira, 16, o mistério sobre o líder indígena foi por terra: 89 anos. Daquela cidade ele foi removido para Sinop.
Debilitado por conta de uma hemorragia digestiva com origem numa úlcera gástrica, Raoni recebeu transfusão de sangue. O boletim médico de ontem, 21, assinado por Douglas Yanai, diretor do hospital e que o assiste, cita que o quadro do paciente é estável. A idade avançada e o quadro emocional do cacique pela perda da mulher, são complicadores, mas uma força interior aponta que sua alta poderá ocorrer no próximo final de semana.
Raoni é líder da Terra Indígena Capoto/Jarina, vizinha ao Parque Indígena do Xingu, mas sua voz se faz ouvir entre todos os aldeados brasileiros. Foi ele quem despertou a comunidade internacional para os impactos ambientais que seriam causados com a construção da hidrelétrica Belo Monte, no Xingu, em Altamira, Pará. Graças ao seu grito o projeto sofreu adequações que amenizam a interferência na vida dos povos da floresta e nela própria.
Quando bradou contra o projeto de Belo Monte não era figura anônima. Entre abril e junho de 1989, apadrinhado por ninguém menos que Gordon Matthew Thomas Sumner o súdito de Sua Majestade a Rainha Elizabeth II que atende pelo nome artístico de Sting, peregrinou por 17 países empunhando a bandeia pela vida caiapó.
Líder nato, descendente de uma tradicional linhagem de caciques caiapós, bem antes de se aproximar de Sting, Raoni elevava a voz do inconformismo. Decidido e de poucas palavras, em 1984 Raoni se pintou com o urucum dos guerreiros para negociar a demarcação de Capoto/Jarina com o então poderoso ministro do Interior, coronel do Exército Mário Andreazza.
Esse território mede 634.915,22 hectares, com a maior área em Peixoto de Azevedo, ao lado do Parque Indígena do Xingu, e se estende ao Vale do Araguaia em Santa Cruz do Xingu e São José do Xingu. Raoni saiu vitorioso e ainda deu um literal puxão de orelhas em Andreazza, gesto que repetiria em 1999, com o mato-grossense, presidente da Funai e ex-vice-governador Márcio Lacerda.
Quando discutiu com Andreazza, Raoni sabia bem o que falava. Foi ele quem negociou com o engenheiro João Carlos de Souza Meirelles, o traçado da BR-080, que liga o Vale do Araguaia ao Nortão de Mato Grosso num trajeto que num curto trecho é ladeado por Capoto/Jarina e o Parque Indígena do Xingu. Essa rodovia foi estadualizada e rebatizada para MT-322.
Em 2006, quando um avião da Gol Linhas Aéreas colidiu sobre Capoto/Jarina com um jato executivo Legacy, causando 154 mortes, Raoni esteve entre os repórteres que foram ao local dos destroços. Ao contrário da fraqueza emocional demonstrada diante do falecimento do filho em Nova Mutum, o líder se manteve altivo. Removidos os corpos, entrou em cena o cacique, para negociar com o Ministério Público Federal e a Gol, uma indenização ao seu povo, o que conseguiu.
Radical, mas sem radicalizar, Raoni costuma se juntar a políticos e cumpre bem seu papel. Quando a Fifa escolhia as 12 sedes para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil, ele veio a Cuiabá a convite do governador Blairo Maggi, para defender a capital mato-grossense junto ao cartola Ricardo Teixeira, da CBF, e o mandachuva Jérôme Valcke, que dava as cartas no futebol mundial.
Desde setembro de 2019 Raoni é uma das indicações ao Prêmio Nobel da Paz em 2020. Ele é o segundo brasileiro (e também mato-grossense) que recebe a honrosa indicação. Há intensa movimentação nas redes sociais em defesa de seu nome. Antes dele, em 1925 e 1957 o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, também esteve no rol dos indicados.
A proposta de indicação do líder xinguano partiu da Fundação Darcy Ribeiro; o físico Albert Einsten, em 1925, e o Explorer Club de Nova York, em 1957, apresentaram o nome do Marechal Rondon. Antes da viuvez com o adeus de Betkwykà, Raoni era cidadão do mundo, acima do endereço domiciliar aldeado. Tanto podia se encontrar em Capoto/Jarina no município de Peixoto de Azevedo, no Nortão, como em qualquer outro lugar, independentemente de seu continente.
Agora, acamado, o grande líder trava a mais importante batalha de sua existência. Essa, pela vida, que teima em escorrer entre os dedos pelo implacável relógio biológico. Que Capoto/Jarina seja seu próximo e breve destino. O povo xinguano continua precisando de sua voz, exemplos e ensinamentos.
O mundo torce por ele nessa luta sem pintura de guerra travada numa UTI, em silêncio, pela bater do coração de um dos brasileiros mais conhecidos mundo afora. Às preces se junta a do Papa Francisco, que ontem lhe enviou mensagem por meio do bispo diocesano de Sinop, Dom Canísio Klaus. O líder católico afirma que pede a Deus pelo defensor dos povos da floresta.
*EDUARDO GOMES DE ANDRADE é jornalista e escritor com mais de quatro décadas de trabalho
Autor: Eduardo Gomes de Andrade